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quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

A privatização do vale-cultura

Fonte: Folha
Há um certo malestar com os rumos da cultura no Brasil, segundo vozes tão diversas quanto Zeca Pagodinho e Mino Carta. Estamos regredindo? A vulgarização nos dominou? Mas é interessante que pouco se discuta o uso dos estimados R$ 7 bilhões em dinheiro público que o tal Vale-Cultura gastará.

É a maior bandeira do Ministério da Cultura, que vai continuar a usar dinheiro público para bancar a cultura de mercado, aquela que já anda sozinha sem incentivos. Empregadores descontarão de impostos R$ 45 dos R$ 50 do vale. Os outros R$ 5 dos R$ 50 mensais serão diretamente bancados pelo governo.

Há quase duas décadas, são os departamentos de marketing das grandes empresas do Brasil que decidem o grosso da verba para a cultura no país.

A Lei Rouanet até ressuscitou a cultura após o terremoto Collor e permitiu o surgimento de muita gente boa, mas a maior parte de sua verba vai para os nomões de sempre, que poderiam sobreviver sem dinheiro público. Sim, as empresas usam dinheiro público em seu marketing e o governo abre mão de ter uma política cultural.

O Vale-Cultura, que deve ser regulamentado até o dia 26, vai botar ainda mais dinheiro público na cultura de mercado. A própria ministra Marta Suplicy afirmou que com o vale, o trabalhador "vai comprar o que quiser". E disse que podem comprar "até revista porcaria", uma escorregada que revela o que ela acha dos destinatários de tal "proposta cultural".

À primeira vista, parece um mix de política generosa "de esquerda" com populismo pão-e-circo.

Mas, se com a Lei Rouanet, já bancamos de shows do Cirque du Soleil a comédias globais, o vale-cultura será facilmente investido/gasto nos multiplex de multinacionais americanas, nos cantores breganejos que já fazem muito sucesso (e que já estão ricos), nos musicais da Broadway. Quem precisa de mais Paulo Coelho? Ou de livros do Silas Malafaia?

Nos raros países onde existem Ministérios da Cultura com orçamento polpudo, a norma é patrocinar o que o mercado não tem interesse. O novo, o arriscado, o polêmico, o criativo; a poesia, a música clássica, o teatro e o cinema (este quase sempre é alternativo se não for made in Hollywood ou TV Globo).

Verbas públicas mundo afora combinam arte com educação ou mesmo arte com profissionalização.
Desde a educação artística (para valer) no ensino básico a escolas profissionalizantes que formem restauradores, produtores, mixadores, iluminadores, maquiadores, roteiristas e tantas grandes profissões que o Brasil precisa (e com milhões de jovens à procura de uma colocação melhor).

O Vale-Cultura não terá esse papel "redistributivo" que aparenta ter. Como já acontece nos filmes de Hollywood, os maiores beneficiários do tal vale serão aqueles que já possuem poder de fogo para gastar em publicidade maciça, usando os meios industriais de sempre. Os músicos que tocam na novela e no Faustão, os livros de autoajuda que ficam nas primeiras prateleiras das livrarias, os blockbusters. É para isso que gastaremos R$ 7 bilhões? A cultura continuará privatizada com dinheiro público.

Como já acontece com ProUni e Minha Casa, minha vida, não haverá exigência de contrapartida para quem for receber essa montanha de dinheiro público. As universidades privadas continuam ser ter que investir em pesquisa ou em novos doutores, as empreiteiras não precisam criar urbanismo em suas novas "Cidades de Deus". Não se exigirá dos promotores da cultura de mercado funções gratuitas, cursos de formação ou livros mais baratos.

Mas não haverá gritaria, caros Zeca e Mino. Uma das ideias mais estapafúrdias da ministra Marta Suplicy, de construir "CEUs da Cultura" na Europa, nem causou rebuliço nas redes sociais. Como se Londres e Paris precisassem mais de centros culturais com dinheiro público do que Cascavel ou Palmas. Nestes dias em que os coletivos "alternativos" viraram completamente chapa-branca, não haverá debate _ coisa que só acontece quando há oposição e situação.

Siga no Twitter: @rauljustelores

Arquivo pessoal O jornalista Raul Juste Lores é correspondente da Folha em
Nova York, ex-correspondente em Pequim e Buenos Aires e ex-editor
do caderno 'Mercado', e bolsista da fundação Eisenhower Fellowships. Escreve às quartas-feiras no site. Siga: @rauljustelores

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